Boris Gucovski

Entrevista com Carolina de Jesus, de "Quarto de Despejo"

Capa - Carolina de Jesus

Noite passada, estive em um sonho compartilhado com Carolina de Jesus, onde ela caridosamente me recebeu em seu castelo imponente.

Noite passada, estive em um sonho compartilhado com Carolina de Jesus, onde ela caridosamente me recebeu em seu castelo imponente. O castelo não era real, é claro, pois se tratava de mais de um de seus sonhos.

(As falas da escritora, abaixo, foram retiradas, com mínima ou nenhuma alteração, do livro “Quarto de Despejo”, onde a autora relata sua vida de miséria e fome entre 1955 e 1958.)

A autora de fato vivia com seus três filhos na favela do Canindé, em São Paulo na década de 50, em um barracão de madeira erguido por ela mesma com o que achava no lixo. A entrevista também não poderia ser real, pois a autora faleceu em 1977. No mundo dos sonhos tudo é permitido, então aproveitei a oportunidade. Nos sentamos à mesa de jantar, bebemos um cafezinho coado e então fiz a primeira pergunta.

B: Carolina, é um grande prazer estar aqui com uma autora tão influente como a senhora. Eu gostaria de começar perguntando por que a senhora escolheu ceder a entrevista neste sonho, neste castelo.

C: O povo brasileiro só é feliz quando está dormindo. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelo imaginários.

B: Então a senhora não é feliz acordada, não leva uma vida feliz de fato?

C: Eu deixei de cantar, porque a alegria afastou-se para dar lugar a tristeza. Deus devia dar uma alma alegre para o poeta. As aves deve ser mais feliz que nós, favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.

B: Me fale mais um pouco dessas dificuldades.

C: Ontem eu amanheci nervosa, porque queria ficar em casa mas não tinha nada para comer. Há de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais.

Nesse momento da entrevista, Vera, sua filha de sete anos, entrou correndo na cozinha, tímida ao olhar para mim, e deu um beijo no rosto da mãe e a deixou toda suja de farelo do bolo que vinha comendo. Carolina sorriu abraçando a filha.

C: Sabe, seu Boris, é horrível ver um filho comer e perguntar: "Tem mais?" Esta palavra "tem mais" fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais. Um dia, a Vera disse: “Mamãe, vende eu pra Dona Julita, porque lá tem comida gostosa.”

Notei que nesse instante o bolo pareceu desaparecer da mão de Vera. Era como se Carolina nem mesmo em sonho pudesse imaginar seus filhos comendo tão bem. Tentei mudar de assunto.

B: Com o que a senhora trabalha atualmente?

C: Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando. Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.

B: E catar papel é suficiente para alimentar a senhora e mais três filhos?

Carolina riu da minha pergunta, e fez um carinho no cabelo de Vera antes de responder.

C: Um operário uma vez perguntou-me: “É verdade que você come o que encontra no lixo?”

Respondi que o custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animaes.

Já estou tão habituada com as latas de lixo que não sei passar por elas sem ver o que há dentro.

Essa parte da conversa pareceu entristecer Vera, que se retirou e foi para seu quarto. Carolina a olhou por um tempo e depois contunuou:

C: Sempre eu passo no Frigorifico para pegar uns ossos pra fazer sopa. No inicio eles nos dava linguiça. Agora nos dá osso. Ouço sempre as mulheres lamentando com lagrimas nos olhos que não aguenta mais o custo de vida.

B: E a senhora acredita que algo possa ser feito para resolver a fome do pobre?

C: Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é a fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou do lado do pobre, que é o braço. Precisamos livrar o paiz dos politicos açambarcadores.

B: Me diga sua opinião sobre a classe política.

C: Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos politicos. O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome tambem é professora.

B: Carolina, mesmo diante de toda essa dificuldade, a senhora lê e escreve. Pode me falar um pouco sobre isso?

C: Gosto de manusear um livro. O livro é a maior invenção do homem. O que escrevo é a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.

B: O Brasil e o mundo só têm a te agradecer pela sua coragem, Carolina.

Ela riu um riso tímido.

Nessa altura da entrevista, percebi que as paredes do castelo estavam, uma a uma, sendo substituídas por tábuas de madeira podre e escurecida. Carolina também percebeu. Meu tempo estava acabando. Antes que eu pudesse fazer a próxima pergunta, vi que Carolina se levantou e puxou duas sacolas grandes de plástico para si. Ela enfiou uns ferros ali dentro e empunhou as bolsas pesadas nas costas. Ao passar por mim, parou um pouco e me perguntou:

“Seu Boris, de que ano o senhor vem?”

“2022”, respondi.

“E como está a vida do brasileiro faminto em 2022?”

Respondi que não muito boa, infelizmente, mas que o povo finalmente decidiu eleger um candidato que já passou fome. Carolina sorriu um sorriso largo e ajeitou as sacolas nas costas com mais afinco. Apertou meu ombro e me agradeceu pela entrevista. E depois saiu do barracão para garantir o sustento seu e de seus filhos mais uma vez. Ela pareceu não carregar só as pesadas bolsas dessa vez, mas também um ar renovado de esperança.